humanoides – Saga de Mavis Bo

– Fracassados! – ela repetia quantas vezes fossem necessárias até toda a raiva esvair completamente de seu corpo, mente, espirito. – Vão ver! Nunca, nunca, nunca, NUNCA MAIS ponho meus pés nesse planeta!

Da sala do pensador, o céu abria cada vez mais. O ar de suas narinas bufantes contra o vidro, se espalhava cobrindo a imagem do pequeno planeta que há alguns minutos atrás esbanjava autoridade pelo tamanho e forma. Agora apena a luz emitida pelo planeta, uma luz fraca e cinzenta, sumindo enquanto Mavis Bo se dirigia cada vez mais em direção ao negrume do espaço. Deu as costas ao planeta Nébula 919. Mavis Bo não tinha certeza de muitas coisas depois de fugir desse lugar. Morrer pareceu uma ótima opção caso colocassem as mãos nela outra vez. Principalmente agora. Precisava proteger sua vida, finalmente tinha entendido o motivo pelo qual estava viva.

Correu. Correu todo o perímetro da nave. A resposta estava bem ali, sabia. De cabine em cabine procurou por pistas da resposta que havia encontrado em Nébula 919. Toda sua jornada até o deplorável planeta teria valido a pena se ele estivesse lá dentro.

– Talvez, se eu tentar chamar… Isso é ridículo. Mas, e se… Ninguém entrou na nave, eu me certifiquei disso. Então eu posso gritar o quanto eu quiser! Não é? Isso não faz sentido, estou falando sozinha?! Qualquer um me ouviria, estou falando sozinha! CRIANÇA HUMANA! CADÊ VOCÊ?!!

Gritou enquanto corria pelos corredores. Gritou enquanto andava entre as demais cabines. Um total de duzentas cabines. Gritou por três refeitórios, gritou até suas cordas vocais falharem e depois se jogou no chão, de braços abertos entre o corredor que leva até as cabines reservadas os clientes dispostos a gastar bem mais pelo mínimo de conforto.

 – E chamam isso de cabine VIP. – ela zombou olhando na direção de um dos quartos – Nunca vou cansar de repetir isso. FRACASSADOS!

Depois da fuga, Mavis Bo procurou pela criança humana correndo pelo navio roubado e não percebeu o quanto cansada estava até cair no chão. Suas pernas não respondiam, chegaram ao limite depois de dois dias andando praticamente sem parar. Seu corpo desejava parar. Uma fração de hora desligada e recarregaria o suficiente para mais meio dia de busca. Seu corpo implorava por isso, podia sentir. Seus dedos, das mãos e pés, tremiam em movimentos involuntários e contorcidos como que entrando em curto. Os braços e pernas latejavam em locais alternados, locais esses que assumiram tons avermelhados como aviso de que um pouco mais e estaria derrotada. A cabeça travou na posição mais desconfortável possível, levantada em direção ao quarto “VIP”

– Mais que merda.

Tinha domínio das pálpebras e fechou os olhos bem devagar, vendo a imagem da cama VIP logo a frente desvanecer. Só podia respirar, e ficou assim por uma eternidade. Podia ouvir o som metálicos de seus dedos estalando freneticamente.

“Que situação Mavis, vergonhosa” ela pensou. Tentou levantar a voz, mas de que adiantaria? “Olha só para você. Eu sei que está cansada, mas descanso é recompensa. Você não está em condições de recebe-la não é mesmo? Não até achar essa criança! levanta desse chão agora. Você consegue. Só mais um pouquinho, e essa criança está salva.”

Respirou fundo como se pudesse puxar todo ar da nave de uma só vez.

– E adivinha quem vai salva-la? – sua voz havia dado sinais de algum resquício de força. – Sim garota, você vai… você vai salvar todo mundo! Vai salvar a droga do MUNDO!

“Lembra o que a louca da Janis falou uma vez…?” uma voz pesada, forte, invadiu sua cabeça.

Mavis se concentrou. Focou nos dedos dos pés, mas sua cabeça respondeu primeiro, caindo para trás provocando um som oco e metálico no chão.

– “just a little bit harder” – ela cantarolou baixinho. O som dos metais na sua cabeça a desafiavam a mover os benditos dedos. As mãos ainda estalavam, Mavis Bo deu ritmo a elas. Do ritmo veio o controle e os pés logo responderam, assim como o todo o corpo.

Se pôs de pé com um pulo e um grito – TRYYYYYYYYYYYY! – e correu.

Os gritos de “Criança humana!” foram automaticamente substituídos por xingamentos. Xingou a viagem, Xingou nébula 919 e seus governantes com insultos dos mais criativos em alto bom som. Xingamentos arcaicos que havia a aprendido com seu mentor séculos atrás vieram na sua cabeça como uma bala, a direcionando tanto pelos corredores já vistos como os novos também. Os xingamentos eram abafados apenas por silvos e frases como “EU VOU SALVAR ISSO TUDO, TUDO!”

Mavis Bo sentiu uma nova energia invadindo o corpo como uma onda, como um choque elétrico. Tinha plena noção do quão ilusória a situação parecia, e usaria isso em seu favor. Procurou identificar algo semelhante a uma entrada ou porta escondida. Se a criança não estava ao alcance de seus olhos estaria ao menos ao alcance de suas mãos. A cabine do comandante da nave foi sua primeira escolha, optou em começar a errar do mais óbvio.  “Esses autômatos não são nada originais, Mavis” a voz em sua cabeça respondeu.

Prestou atenção a voz.

– Nada originais – repetiu ao observar a sala de comando, estranhamente pequena para uma nave desse porte. Entendia o funcionamento de naves, não se considerava uma grande conhecedora, mas sabia usar uma quando necessário. Como de fato o fez. Quando ligou a nave, fez isso pelo controle de voz da Sala do Pensador, o salão privado onde apenas os chefes daquela operação teriam acesso e garantiu que a voz do comandante fosse emulada com perfeição. Nada podia dar errado. Entretanto o acesso de fúria após a partida a distraiu, e desabilitar cada robô da nave fora o trabalho mais minucioso já feito por ela, sem mencionar cansativo. Não tinha dedicado tempo suficiente aquela cabine.

– Cabine, aqui é CON919A3 – Mavis disse assumindo a voz que havia roubado do comandante. Logo pequenas luzes de cores específicas adicionaram ao painel iluminado em tom de verde. Sinais em azul, com símbolos de ondas. Vermelhos cravados em um  clássico sinal que identificava perigo. Sentiu uma pontada de orgulho, aquele provavelmente era o botão que prejudicaria sua entrada naquele navio, se não tivesse tomado o cuidado necessário ao invadir.

Rodou os olhos em busca de pistas. Nada.

– Cabine, responda.

Do teto uma voz pareceu emergir.

–  A3 . ativada.

Mavis tossiu – A3, me mostre a situação P7CH-ONP

– Negado – a voz respondeu – Iniciando protocolo de aniquilação.

– O QUE?! NÃO! NÃO! NÃO! SEM ANIQUILAÇÃO SEU, SEU MERDINHA! – Mavis gritou, sua voz era uma mistura de medo e extrema raiva. Perdeu o controle e a voz do comandante havia se perdido em xingamentos.

“O que eu faço? O que eu faço? O que eu faço?” ela pensava, não levantou mais a voz. Não queria piorar a situação. Enquanto isso, o computador da cabine começava uma contagem. Mavis desejou poder entrar no sistema e destruir por completo todo o sistema, mesmo sabendo não ser possível. Passou a mão no alto da testa, sentiu dois pinos arredondados sobre a pele. Caso se desse ao luxo de invadir um sistema tão vigiado estaria liberando o maior sinal possível correria o risco de liberar qualquer sinal. Não tinha certeza quanto a isso, só não podia e nem queria arriscar. Qualquer sinal e naves mercenárias emergiriam a volta.  Já devem estar a procura de qualquer rastro deixado pela nave e mesmo seu melhor trabalho ao hackear e de camuflagem estaria perdido em um piscar de olhos.

– Cancelar! Cabine, cancelar! Cancela toda essa merda!

A cabine parou a contagem e disse – Para cancelar o protocolo de aniquilação, inserir chave magnética em noventa segundos.

Mavis Bo sorriu, havia roubado uma chave do comandante quando o destruiu.

– É isso aí Cabine! – disse enquanto tirava a chave do pescoço – Agora vou colocar essa chavinha bem aqui no buraquinho da chavinha… e ninguém morre.

Uma luz fraca, amarelada brilhou em volta da chave quando Mavis a colocou, ao gira-la percebeu a cabine analisando a chave. Uma faixa de luz amarela correu da entrada da chave em direção ao outro lado da cabine, onde mais uma abertura idêntica esperava. Ela seguiu novamente a luz amarela e tentou retirar a chave do lugar. No primeiro puxão bateu com a mão na cabeça. – Sabia. – disse

Precisava de outra chave, mas onde? Enquanto se perguntava onde poderia estar a segunda chave, a contagem já chegava na metade. Isso a tirava do sério. Saiu da sala para pensar um pouco. Usou a imaginação para criar uma alternativa, como se alguém pudesse guia-la até o local onde uma chave importante como essa poderia estar. Uma mesa, uma caixa, em alguém. Sim, em alguém. Só poderia estar em alguém. “Esses autômatos não são nada originais, Mavis. Não são como você…”

Mas não era tão fácil assim.

Mavis Bo tinha nocauteado o Comandante da nave, assim como todos os robôs dentro dela. Todos desligados. Todos na mesma sala, relativamente longe da cabine, porém se o comandante estava em posse dessa chave, ela não seria menos importante para missão.

“E robôs não usam chave” pensou. Na mesma hora tomou a chave para si. Vendo agora que eram necessárias duas delas para impedir uma aniquilação gratuita, só significava uma coisa.

– Se você não estiver aí dentro eu acabo com você criança. – murmurou enquanto corria novamente até a sala onde havia depositado todos os robôs desativados, inclusive o comandante.

Da sala de comando pode ouvir a contagem marcando quarenta segundos para inserir a segunda chave. Acelerou o passo. Procurou entre robôs aqueles com alta patente, nenhum dos oficiais estava portando uma chave. Um por um ela procurou. Do subcomandante ao último soldado. Nenhum sinal da chave. Quando luzes de alerta começaram a piscar pelas cabines e corredores ela decidiu voltar. Ao lado, um dos primeiros robôs que havia desativado caiu sobre a porta com um som abafado assustando, no entanto esse robô pareceu o sinal de ajuda que tanto precisava.

– Só mais um pouquinho criança humana!! – disse ela indo na direção da sala de comando a toda velocidade. Atrás vinha seguindo um robô meio enferrujado, andava em ziguezague, sinal se falta de calibragem. Mavis o puxou com força para a mesa onde a chave estava.

– Quero uma cópia perfeita, ouviu bem?!

 O robô de manutenção não respondeu, fora feito apenas para executar pequenos serviços de reparos. Aquele era um desafio, mas o tom de Mavis o deixou consciente da necessidade e da pressa. Enquanto isso Mavis apenas esperava um plano tão ruim quanto esse dar certo. O robô de manutenção entregou uma copia da chave, em material plástico, faltando oito segundos para a contagem terminar, fumaça saia de suas entradas e desativou automaticamente.

Mavis inseriu a chave tremendo. Ela entrou. O painel brilhou em amarelo mais forte assim que ela girou a cópia plástica. Mavis sentiu que por pouco não havia travado. As luzes foram as primeiras a da sinal de estabilização, seguido da voz no painel afirmando normalidade. Mavis Bo se sentou ao lado do robô de manutenção completamente apagado, deu tapinhas nas costas dele. Tentou retirar as duas chaves do painel, elas saíram com facilidade.

Saiu da sala de comando. Não queria mais ficar ali. Voltou para a Sala do Pensador e sentou no chão. Ficou olhando o vasto céu por uns minutos, pensando.

“Talvez, essas chaves não sejam a resposta… Talvez a sala de comando não seja a resposta” pensou rindo. Estava cansada de andar, de correr, mas não podia deixar de procurar. Deu uma cambalhota até o outro lado da sala e deu com as costas em uma porta. Tentou abri-la por pura curiosidade e viu que precisava de uma chave. Rindo colocou a chave de plástico e girou, ouviu o barulho de algo destrancando, esfregou as mãos em sinal de entusiasmo. Quando abriu a porta o sorriso em seu rosto desapareceu.

Quando Mavis recebeu o comando para invadir o projeto P7CH-ONP e buscar a criança humana, tinha algo completamente diferente em mente. Por vezes se pegou imaginando situações como encontrar a criança em alguma zona de proteção, campo de vibrações ou até mesmo em um tanque de resfriamento. Não em uma cama. Mas lá estava ela, dormindo como se universo descansasse com ela. Chegou mais perto, procurando assegurar-se de que seus passos eram silenciosos e delicados, não havia necessidade de acordar a pobre garotinha. Sentou-se em uma cadeia ao lado da cama e ficou observando como se aquela criaturinha orgânica fosse sua. Não era, sabia disso.

Sua mente era completo vazio diante da criança. Seu rosto redondo, surpreendentemente corado reluzia a cada suspiro profundo. Os olhos mexiam frenéticos por baixo das pálpebras, Estava sonhando. “Com o que?” Mavis Bo pensou automaticamente. Breve saberia. Ficou assim por quase duas horas, observando os sonhos da garota. Depois que sentiu o perigo se esvair de sua pele, voltou a cabine a fim de analisar o curso, era a ultima parte da sua tarefa e deveria executa-la corretamente.

– Tudo tranquilo por aqui. – disse para o robô de manutenção ao seu lado. Havia ligado o pobre outra vez, dentre todos era o único que merecia retomar a consciência Ele ainda cambaleava, nunca ligou e desligou tantas vezes no dia. Mavis tentava direciona-lo pelo corredor com uma das pernas que havia rasgado de um dos robôs oficiais, quando na sua frente admirando a vista do espaço estava a garotinha. Mavis pode olhar para ela dos pés a cabeça e o susto tomou seu coração gradativamente. Abaixo dos longos cabelos cor de palha, braços biônicos davam lugar ao que deveriam ser os braços de carne de uma linda garotinha, assim como uma das pernas. Quando ela se virou com um sorriso largo e cintilante, Mavis Bo pode ver que um de seus olhos brilhava mais que o normal. Sentiu vontade de chorar, só não saberia dizer se de alegria ou tristeza.

A Saga de Mavis Bo

Provisórios Um

– Isso é para vocês! – disse Mavis Bo

A voz doce, porém de uma firmeza absorta na certeza de quem tomou a decisão correta percorria pelo salão supostamente vazio enquanto seus olhos totalmente abertos procuravam capturar a incompletude da parcela de universo proposta da janela da nave.

O sistema de ventilação proporcionando uma brisa tão deliciosa quanto eficiente a fim de simular o sopro do vento a céu aberto como em qualquer navio espalhado no vasto oceano. Apenas a Sala do Pensador fora especialmente arquitetada para permitir o desabrochar de tal sensação, todos os outros locais da nave recentemente intitulada Provisórios Um  possuíam o aspecto comum de uma nave espacial tripulada.

Sala do Pensador era diferente por diversos ângulos, fisicamente era pequena demais para dar uma festa, mas do tamanho ideal para uma pequena reunião de amigos íntimos. Perfeita para arquitetar qualquer plano megalomaníaco de conquista, a vista era ideal para dar clima os planos mais absurdos visto que, com a forma de um triângulo equilátero, seus três lados precisos fechavam a sala no alto da nave provocando a quem estivesse dentro a melhor das ideias, aspirações ou então a total insanidade. A vista completa da massa confusa, brilhante, quase sinfônica e inspiradora do Espaço.

Mavis Bo, com os olhos imersos no que sua mente simplória simulou como uma sopa de poeira e estrelas dentro de uma panela escura, respirava a falsa brisa profundamente e inspirava como se pudesse perder todo o fôlego do outro lado do vidro ultra temperado que a protegia da morte por sufocamento bem a sua frente. Seus cachos castanhos balançavam e só havia uma coisa a fazer.

Desafivelar o cinto, baixar as calças e a roupa de baixo. Escolheu o melhor ângulo, de frente para o Nébula 919.

– Isso é para vocês! – disse Mavis Bo virando as nádegas e pressionando contra a parede na direção do espaço – Fracassados!