Depois de um dia longo de trabalho, o Amor resolveu tirar a noite de folga. Seria só aquela noite, ele prometeu para si mesmo. Afinal, esse período de poucas horas ativas lhes guardavam, geralmente, a maior carga de trabalho por minuto se comparada aos outros momentos de um final de semana qualquer. No entanto, até os sentimentos mais atrativos e necessários do ser humano precisam relaxar. Momentos de lazer e descontração podem tanto equilibrar a alma quanto reanimar qualquer espírito. Com o Amor não seria diferente. Para tanto seria preciso ter alguém ao seu lado.
“Amizade seria perfeita nessa hora.” pensou suspirando. Poderia passar aquela noite sozinho, como já era de costume, mas aquele era um dia especial. Nada de bancar o platônico solitário.
Começou a busca pela Amizade. Andou pelas por todas as ruas que a vista consegue alcançar. Desde as ruas mais iluminadas até os becos úmidos e ecoantes e nada da Amizade aparecer. Pensou nos possíveis locais onde ela pudesse estar trabalhando, não era comum vê-la de mãos cheias tão tarde da noite, mas também não se surpreenderia caso a visse auxiliando em alguma despedida dolorosa, acalentando os corações com memórias fortificantes. Não só uma despedida. A Amizade celebra muito e em muitas ocasiões diversas.
Observou o relógio de bolso. Sim, o Amor estava em um daqueles dias românticos. Avaliou as horas. “04:27h” leu atentamente. De imediato surgiu imagens de alguma mulher suando e gritando em uma sala de parto qualquer dando a luz ao motivo mais forte de alegria que alguém está disposto a imaginar.
“Nascimentos, são os preferidos dela” pensou o Amor.
Não obstante, o Amor sentou aconchegante no banco mais próximo dentro de um parque bem iluminado bem no meio da cidade. Passou pelo menos meia hora ali. Pensando. Pensando. Pensando. Imaginando quais os tipos de afazeres a Amizade estaria ocupando naquele momento para estar tão longe. Pensou tanto e tão profundamente que não teria notado nem se o chefe do seu chefe, o Sr. das Razões em pessoa, se materializasse ao seu lado.
Quanto mais a pobre Amizade.
“O que você observa com tanta vontade por essa janelinha?” a Amizade perguntou ao Amor com um tom de curiosidade e delicadeza na qual normalmente são oferecidas apenas para crianças ou idosos geniosos.
O Amor sorriu para a Amizade com alívio nos ombros ao respirar fundo – “Desisti de procurar por você pelas ruas e acabei procurando por você dentro de mim.”
“Essa é perfeita para reconciliações, é melhor anotar para não esquecer”
Amizade estava certa. Ele anotou no lenço onde costumava colocar todas as suas ideias súbitas.
“Mas falo sério. Fiquei me perguntando o que estaria fazendo há essa hora.”
“E chegou em algum lugar?”
O Amor fez que sim com a cabeça, sorriu no canto dos lábios e enumerou da seguinte forma.
” As opções são: Partida ou chegada.”
“Errado e errado” respondeu a Amizade “muito comum não acha?”
Ele deu de ombros. Prosseguiu, foi de Nascimentos desta vez, o que recebeu outra negativa.
“Seria perfeito se fosse algo como um Nascimento. É bem do que preciso hoje”
Amizade bufou. Soltou mais algumas reclamações se esparramando no banco ao lado do Amor. Aquilo o intrigou.
“Então não adianta nem eu falar a minha terceira opção. Com certeza não passou a noite com um grupo de crianças jogando algum jogo imaginativo, daqueles de matar os bichos e virar herói de todas as paradas maneiras…” – disse o Amor. Por pouco não ultrapassa o limiar da leve ironia com o deboche.
A Amizade encarnou seu lado mais criança e dirigiu ao companheiro um olhar vesgo. “É meio preconceituoso da sua parte pensar que por ser a agente da amizade meu trabalho é um mar de alegrias e doces emoções.”
“Não é?” respondeu o Amor acompanhado de um sorriso maldoso “No meu trabalho é só flores e chocolates”
Dois segundos de silêncio depois os dois soltaram uma risadinha fraca, porém sincera.
“Nada como sorrir da desgraça” disse o Amor “Mas me diz… é muito ruim?”
Ela ponderou por longos minutos buscando as melhores palavras para começar a descrever seu maior trabalho do dia. Quando entendeu mais ou menos o ponto de partida esticou o braço e caiu com a mão direita sobre o ombro do Amor, que por sua vez foi tomado por uma visão diferente da de poucos segundos atrás. O parque, com seu banco de ferro, plantas diversas e iluminação forte ficava cada vez mais distante a medida que avançava para frente como em alta velocidade sem sentir sair do lugar. Apenas sua mente viajava pelo espaço quase infinito de ruas, paredes, céu, esquinas, valetas e estradas. Quando já não conseguia mais distinguir o que era cima ou baixo, e os lados se mostraram alinhados, conectados na forma de um túnel infinito para frente sentiu a extrema necessidade de vomitar e por pouco não o fez.
Piscou algumas vezes para se acostumar com a claridade do dia. Mesmo a meses de distância pode ouvir a voz da Amizade com perfeição na clareza.
“Está vendo essas duas garotas sentadas conversando?” ela orientou. O Amor fez que não com a cabeça. Havia pelo menos três duplas de jovens mulheres sentadas conversando a sua volta. Sem falar nos grupos mistos onde as moças poderiam muito bem estar desfrutando de conversas de formas separadas.
“Se concentra um pouco! Bem ali no canto, onde ficam as cadeiras mais confortáveis do restaurante. Uma veste um macacão violeta, tem cabelos curtos cheios de cachos da cor de terra molhada e a outra..”
“Com vestido florido e de cabelos bem lisos! Achei!” disse o Amor em clima de investigação. “o que tem elas?”
“Quero que as observe um pouco”
E foi o que o Amor fez.
As duas, sentadas uma de frente para outra, pareciam alegres ao conversar. A de cabelos cacheados saboreava um prato com carne e batatas. Salada e suco para outra. A de cabelos lisos saboreava sua salada enquanto ouvia a de cachos falar entusiasmada sobre algo. O Amor pensou em chegar mais perto. A curiosidade sobre o que a moça poderia estar falando o levou a caminhar, se pôs de frente para as duas. Atravessou a mesa, cadeiras, comida e tudo sentando-se ao lado delas.
A garota entusiasmada de cachos infinitos contava algum tipo de sonho louco ou uma história digna de receber um bom e elaborado roteiro de cinema.
“Não há nada de errado aqui” afirmou o Amor. “Ao que parece é um bom dia para essas duas. Apesar de uma não para de falar, o que ela diz é bem convidativo e interessante o bastante para manter a outra interessada. Na verdade, até eu estou um bocado interessado no desenrolar dessa cabecinha imaginativa.”
Amizade apareceu diante do Amor como um sopro em sua orelha. Apontou para as duas repetidas vezes, em seguida estendeu os braços ao companheiro de trabalho. O Amor deu com as costas para trás da cadeira acolchoada como se quisesse se livrar de alguma maldição jogada pela Amizade.
“Você não vê?! Essas duas estão a ponto de nunca mais se falarem outra vez!”
O Amor caiu para trás de susto. Aquilo era demais até para ele. “É isso que dá ficar saindo toda semana com aquelas emoções terciárias. Você começa a analisar demais quando na verdade está tudo numa boa.”
“Por acaso EU não te ensino a fazer o seu trabalho, senhor que mal tem dividir apartamento com o Medo, coitadinho dele?! “
Bom, o Amor não tinha resposta para aquilo. Hospedar o Medo não foi lá a ideia mais inteligente.
“Escuta, esse é um relacionamento de amizade tipo um! Relações assim estão a beira da extinção! Já são quinze anos trabalhando nessas duas e só de pensar em tudo isso acabar… Ah! Vamos procurar algum bebê nascendo por aí, vamos?”
A pobre Amizade estava literalmente derretendo de desânimo quando o Amor a segurou pelas mãos.
“Ei, não fica assim. Você é forte, inteligente. Vai achar uma saída para esse problema.”
“Já não tenho tanta certeza. Essas duas parecem querer se separar, só dificultam meu serviço”
“Para começo de conversa, se endireita! Isso, muito melhor. Levanta os ombros e respire fundo. Quando eu estou pra baixo assim como você recitar o lema da empresa sempre ajuda a me animar”
Amizade olhou desacreditada para o companheiro. Se tivesse energia tiraria boas risadas, mas na atual conjuntura o que não acrescentasse também não afetaria.
“Formar, auxiliar, retribuir. Formar, auxiliar, retribuir. Das relações sou consequência, das pessoas natureza. Formar, auxiliar e esperar o retribuir.”
Em cada frase um longo suspiro se seguia.
“Elas são novas demais para o retribuir, o que nos resta apenas nos esforçar no auxílio.” disse o Amor. Aquilo deixou a Amizade curiosa.
“Nos resta? Vai entrar nessa briga também?”
Antes de responder, o Amor deixou escapar uma risada leviana enquanto ajeitava o colarinho.
“Eu não sei o grau de raridade de uma amizade tipo um, ou o quão complicada parece a restauração dessa bagunça, mas de uma coisa eu sei. Tudo, tudo melhora com uma pitada do Amorzinho.”
“Você é ridículo as vezes.” disse a Amizade sorrindo levemente “É por essas e outras que a Raiva não quer te ver nem pintado de ouro”
Ele deu de ombros. “Vamos lá. Me explica melhor então a situação.”
A Amizade assentiu com a cabeça. olhou determinada para as duas garotas. A de cabelos cacheados terminara sua história e as duas agora dividiam a atenção entre pequenas falas entrecortadas pelos respectivos pratos. O Amor notou que os olhos da Amizade lacrimejavam só em observá-las.
“O silêncio é ruim para a Amizade?” perguntou ingênuo.
“Não necessariamente. Mas vê, não sabem mais aproveitar o silêncio entre elas. Antigamente essas duas viviam falando. Em todos os lugares! Não calavam a boca, e ainda assim tinham ótimos momentos de silêncio. Não havia necessidade de preencher um vazio porque o silêncio não representava um vazio em si. Entende?”
“Acho que sim.”
“Amizade tipo um é a mais rara porque é a única, em todas as listas e mais listas de escalas, cuja formação é independente de mim.” – deixou escapar docilmente. Amizade fez parecer como se dividisse com o Amor um segredo há muito escondido.
“Espera um minuto. Está me dizendo que você não tem nada a ver com essas duas serem amigas?”
A Amizade balançou a cabeça “Claro que depois de iniciada eu trabalhei, e venho tentando desde então mantê-la. Nisso é como qualquer outra relação de amigos formada por mim desde o início. Mas na formação, no nascimento, não… ela veio sozinha. Independente do meu agir. Ela se construiu pela vontade delas em se tornarem amigas”
O Amor levantou os braços de sobressalto. “Que viagem!”
A Amizade abriu as mãos em consideração. Inclinou o corpo para frente e apoiou a cabeça com a mão direita.
“São mais de dez anos de estrada juntas. Até então nunca senti que poderia perder essa duplinha. Agora, olha só pra isso. Enquanto uma tentava preencher a falta de emoção no encontro com algumas histórias imaginativas a outra não parava de balançar a perna por baixo da mesa. Ao se encontrar mal se abraçaram. Tudo bem, elas nunca foram de abraçar muito, mas ainda assim! E agora não param de mexer nos celulares! Como eu odeio celulares!”
“Jura?! Eu gosto bastante. Tem sido um bom parceiro para mim. Sabe como odeio criar papinhos iniciais às vezes, e o celular impulsiona a conversa no meu lugar quando não estou muito inspirado.”
“É por isso que ultimamente seus relatórios estão cada vez mais insatisfatórios” pensou a Amizade, revelaria isso depois com certeza.
“No meu caso mais atrapalha que ajuda” disse. Porém, o Amor não ouvia nada. Seus olhos estavam atentos ao celular.
“Olha isso Amizade, eu conheço essa moça de cabelos lisos! Nossa como ela mudou!”
A Amizade pouco entendeu a situação e resolveu deixar o companheiro continuar.
“Lembra daquela garota que só me dava dor de cabeça?! Tem quase um ano isso.”
“Acho que sim, talvez. Tá falando da menina que quase se apaixonou três vezes?”
O Amor assentiu vividamente. Apontou para o celular “Parece que o quarto vingou.” Ele leu alguns minutos da conversa e depois se voltou diretamente para o rosto da menina de cabelos lisos ” Sério, número quatro? Tá de brincadeira comigo, mocinha?! Esse cara é um mala! Só coloquei ele no seu caminho para ver se o seu problema era autoestima!”
“Bom” disse a Amizade buscando o tom da sabedoria tibetana “as vezes o coração quer, o que o coração quer”
“E às vezes o coração quer um grande mala sem alça chorão pra chamar de seu” completou o Amor na mesma serenidade irônica.
A culpa os fez parar de rir alguns minutos depois. Foco, precisavam de foco.
“Eu estava olhando aqui do meu cantinho” disse o Amor ” Elas são muito diferentes, certo?”
“Como água e vinho” respondeu sorrindo a Amizade “Como água e vinho.” Apontou para a de cabelos lisos “Vê como é vaidosa?”
O Amor fez que sim com o dedão. “Lembro bem, só de bolsas essa daí provavelmente perdeu a conta.”
Amizade soltou uma risadinha para a de cabelos lisos, que levantou justamente para ir ao banheiro retocar a maquiagem. A de cabelos cacheados puxou uma mochila escura até o colo procurando o que parecia um caderno pequeno.
“Por outro lado, faz oito anos que essa mochila a acompanha na vida.” – falou Amizade com satisfação.
“Oito anos com a mesma mochila?” disse o Amor diretamente para a moça.
“Cada rasgo aumenta mais a afeição. Praticamente uma companheira” – Era o que a moça diria ao Amor se tivesse a chance. Respondeu Amizade “Essa é minha parte preferida nisso tudo. Tão diferentes e ainda assim se dispuseram sozinhas a criar um laço de amizade tão puro.”
O Amor analisou a expressão no rosto da Amizade. Aquilo a preenchia tanto quando um casamento às pressas ou bodas de ouro preenchiam seu coração. Tanto quanto o Eu te amo de uma mãe para um filho”
“Vai fazer de tudo para manter essas duas unidas não é?”
“De tudo e mais um pouco” respondeu a Amizade “Hoje elas seguem caminhos completamente opostos e por vezes me dói ver que nem sempre elas valorizam as escolhas da uma da outra. Tem momentos que os defeitos são exageradamente acentuados aos olhos de cada uma quando o as personalidades se chocam, mas sei que a dor que sinto é mil vezes maior dentro delas quando pensam nas inúmeras possibilidades em que a vida as separa súbita ou gradativamente.”
O Amor suspirou. Disso entendia muito bem.
“Vou te ajudar no que tiver ao meu alcance, mas não se esqueça. Não podemos afetar o livre arbítrio de ninguém.”
“Sei disso, sei disso… mas não custa nada relembrá-las certos acontecimentos importantes vez ou outra. Nem que sejam apenas as piadas recorrentes ou os choros, os momentos de perda onde uma estava do lado da outra.”
“Claro, isso é perfeito. Vou dar uma mãozinha também, um pouco de carinho sobre lembranças sempre ajudam os humanos a se procurarem.”
“Boa ideia” disse a Amizade sentindo um pouco mais reconfortada. “Quem sabe assim, aos poucos, essas duas reconstroem a aquilo que o Tempo vem desmontando.”
“Afinal, elas começaram essa empreitada sozinhas. Vão conseguir entrar no eixo novamente.”
“Sim” respondeu a Amizade.
“Você mencionou o Tempo… e se tudo isso foi culpa dele?” jogou o Amor. “Às vezes a imparcialidade do Tempo não te irrita?”
A Amizade coçou a testa por uns segundos, o Amor adorava quando ela entrava no modo pensativa. Não sabia o porque, sempre que a Amizade ou coçava a cabeça ou inclinava o rosto em pensamento se sentia estranhamente feliz.
“Não posso negar. Às vezes o Tempo atrapalha meus planos. Mas o que podemos fazer? Discutir com o Tempo é como advogar em águas internacionais.”
O Amor teve de concordar e sem que os dois percebessem as duas amigas levantaram e se dirigiram para a saída do restaurante. A de cabelos cacheados retirou um pacote da mochila.
É pra você – disse desajeitadamente – Encontrei em uma livraria bem escondida no centro da cidade. Tentei embrulhar, mas sabe como é…
A de cabelos lisos recebeu o presente com ar de curiosidade e o abrir o pacote se derramou em lágrimas.
Como você achou?! – ela perguntou.
Sei lá… só garimpei por aí. Não foi tão difícil quanto pensa.
Não foi difícil o caramba! Procurei ele há pelo menos cinco anos! E está perfeito! Exatamente como quando eu perdi.
Bom, vê se não perde dessa vez. – disse a de cabelos curtos rindo.
Espera, eu tenho algo para você também…
“Espera um pouco” disse o Amor “o que está acontecendo?! Me perdi”
A Amizade sorria e gargalhava aliviada. “O inesperado” ela respondeu “outra vez”